Acordei com a notícia de que há um número crescente de potenciais senhorios a exigir aos potenciais inquilinos que estes revelem informação financeira, nomeadamente a nota de liquidação do IRS, para que seja possível um simulacro de avaliação de risco de incumprimento. O objetivo dos senhorios será avaliar a saúde financeira do potencial inquilino para minimizar os riscos habituais associados ao arrendamento. No fundo, tentar antecipar qual a probabilidade de cada um dos potenciais inquilinos deixar de ter condições de pagar a renda. Quem se dispõe a arrendar um imóvel num contrato de longa duração (ou curta) gostaria de não ter de enfrentar situações de incumprimento no pagamento das rendas nem tão pouco ter de recorrer à justiça para resgatar o imóvel ocupado por inquilinos relapsos. Haverá até cada vez mais senhorios a exigir a apresentação de fiador(es). No fundo, os senhorios querem proteger o seu interesse reduzindo a sua ignorância sobre o inquilino a quem entregarão o usufruto do imóvel por contrapartida de uma renda.
Mas, aparentemente, poderá haver um problema com este fluxo de informação do inquilino para o senhorio. É pelo menos tema de discussão nos media. Há associações de inquilinos, no que parecem ser secundadas parcialmente (para já) por quem entende da proteção de dados pessoais, que a privacidade do inquilino está a ser violada. A informação fiscal é informação particular e sensível, ninguém o nega. Detalhando as justificações para que esta informação possa ser partilhada com terceiro constata-se que há uma que pode justificar esta troca de dados no caso de um contrato de arrendamento: o consentimento. Mas, advogam alguns entendidos em proteção de dados pessoais que o consentimento num caso como este é forçado, pouco livre, no final de contas, o senhorio pode simplesmente recusar-se a arrendar o imóvel a um potencial inquilino que se recuse a divulgar esse informação privada e sensível…
Os senhorios por outro lado advogam que se a informação fiscal é privada, a propriedade que arrenda também o é. É um bem que lhes pertence e que querem proteger, afinal não têm obrigação de dispor da sua propriedade privada e incorrer em riscos sem ter condições de se protegerem. A alternativa de exigir uma garantia bancária aos potenciais inquilinos implicaria, na prática, uma oneração dos custos que eliminaria boa parte do mercado (os inquilinos não a conseguiriam suportar). Como tal muitos recorrem a um procedimento que, bem vistas as coisas é uma versão aligeirado do que é comum em outros contratos. Quais? Nos contratos de crédito à habitação realizados entre particulares e instituições bancárias ou na própria contratação de uma garantia bancária.
Ora é aqui que quero chegar. Um cidadão interessado em adquirir um imóvel e que tenha de recorrer a um banco tem de facultar a esse banco, frequentemente, toda a informação fiscal, comprovativos de salário e de contrato de trabalho, é aconselhado a apresentar comprovativos de poupanças ou aplicações financeiras que tenha junto de outras instituições financeiras, fiador e informação comparável sobre o fiador, informação médica (análises clínicas para um seguro obrigatório) e sabe até que a instituição financeira tem acesso ao seu cadastro centralizado com as operações de crédito e/ou incumprimentos históricos em que tenha estado envolvido.
A minha pergunta decorre naturalmente da comparação destes dois casos, o arrendamento e o crédito. Casos que, note-se são concorrentes no mercado. Comprar ou arrendar são opção muitas vezes de uma decisão única associada à habitação.
Em que é que um senhorio e um banco se distinguem na proteção dos dados individuais da parte com que vão contratar? Há um que é pessoa de bem e outro pessoa de mal? Onde é que há maior desproporção na relação contratual: entre um senhorio e um inquilino ou entre um credor bancário e um devedor particular? Porque é que as preocupações quanto à privacidade se levantam num contrato de arrendamento e têm sido ignoradas décadas a fio na relação banco-cliente bancário?
Choca mais à comissão nacional de proteção de dados que um inquilino partilhe informação privada e sensível com o senhorio do que com um instituição financeira que imediatamente criar um registo numa base de dados acessível virtualmente a milhares de funcionários bancários?
A proteção dos interesses das partes e a segurança contratual são problemas eternos e talvez ainda mal resolvidos nos contratos de arrendamento contudo, esta preocupação cheia de boas intenções que, no limite, se centra na intensidade com que o consentimento é livre ou forçado, parece-me completamente deslocada e, no limite, contribuirá, se levada ao extremo (proibição de exigência e cedência) para que o mercado do arrendamento definhe.
O espaço que se está a deixar para a livre iniciativa e contratação corre o risco de ser nulo ou meramente caricatural. Se num contrato, a boa fé e a capacidade financeira das partes é fundamental para que exista interesse efetivo no contrato e se estas não poderem ser abordadas de forma comprovada, o contrato deixa de se celebrar. É simples. O direito à privacidade de uma parte esbarra no direito à informação da outra, tal como sucede se em vez de um senhorio tivermos um banco. Se lhe juntarmos a (ainda consagrada) liberdade contratual, muito naturalmente, um senhorio forçado à completa ignorância e consciente que o recurso à justiça é penalizador para os seus interesses, retirará os seus imóveis do mercado de arrendamento. O ideal seria mesmo que a justiça funcionasse e que tal não implicasse custos para o senhorio perante um inquilino incumpridor, mas não existindo esse ideal, não se percebe como este fraco remedeio de exigir informação financeira do inquilino possa ser proibido sem que com isso se conduza a uma redução da oferta e um natural encarecimento das rendas daqueles que se arrisquem a manter atividade.
Em breve saberemos se é legal um senhorio exigir-lhe a nota de liquidação do IRS mas desde já podemos antecipar as consequências da resposta, seja ela qual for.
Opinião de Rui Cerdeira Branco em exclusivo e a título gracioso para o Economia e Finanças.